Há algo de muito errado com a indústria automobilística no Brasil
Marcas que lideram as vendas reclamam de prejuízos enquanto outras montadoras insistem em produzir veículos que emplacam o mesmo que importados mais caros
Está em qualquer livro de história sobre o século 20: Henry Ford, fundador da marca que leva seu nome, revolucionou a indústria ao criar a linha de montagem, que reduziu custos e tornou os produtos industrializados acessíveis para bilhões de pessoas. Desde então, existe uma busca sem fim por produtividade, ou seja, formas de produzir mais com menos custos.
E a lógica elementar ainda diz que grandes volumes diluem o custo fixo tornando os produtos mais baratos e acessíveis. Mas, por incrível que pareça, o mesmo setor que ensinou toda a cadeia produtiva hoje vive dependente de subsídios, proteções e carregado de impostos, taxas e até mesmo participação nos lucros mesmo com prejuízo anotado.
Um século depois que Ford introduziu a linha de montagem (1913), no entanto, o automóvel tem sua utilidade questionada como nunca. De meio de transporte preferido do público, o carro passou a ser visto como causa de poluição, improdutividade, doenças causadas pelo stress, além de milhares de mortes em acidentes – embora os veículos tenham se tornado claramente mais seguros com o passar do tempo.
Na Europa, cidades começaram a banir o seu uso irrestrito. Londres cobra um pedágio de 12 libras (cerca de 60 reais) para quem decidir acessar áreas centrais, já Hamburgo, na Alemanha, pretende eliminar os carros dentro da área central na próxima década.
Essa antipatia com os automóveis e o surgimento de novos modais de mobilidade, incluindo os aplicativos de transporte individual e o compartilhamento de carros, têm provocado uma corrida entre as montadoras para mudarem seu perfil de “comercialização de produtos” para “provedoras de serviço”.
Mas é fato que o uso do automóvel deve cair nos próximos anos à medida que o transporte público de qualidade (leia-se metrô) se expande em regiões muito populosas e mesmo o uso de meios alternativos como bicicletas e patinetes elétricos também contribuem com um cenário mais sustentável de mobilidade.
Ou seja, o futuro é assustador para a indústria automobilística que tem perdido um trunfo com o qual conseguiu maquiar uma realidade que se agravou anos a fio. Desde que os departamentos de marketing associaram o automóvel à liberdade e ao prazer de guiar, além do status de possuir determinado modelo de veículo, esse expediente tem sido usado sem discriminação mesmo quando passou a ser uma grande mentira.
Recentemente, o discurso mudou levemente assim que as tecnologias de conectividade surgiram. Desde então, o carro passou a ter um papel de sala de estar ou escritório para muitos proprietários, mesmo que seu veículo fique parado no trânsito por horas.
Sinais invertidos
Esse panorama, no entanto, ainda é discutível no Brasil. Nosso país carece de transporte público de qualidade na maioria das grandes metrópoles e oferece pouco espaço para bicicletas, por exemplo. Os serviços como Uber e 99Taxi, no entanto, já tem refletido numa mudança de comportamento sobretudo nas gerações mais novas que dispensam a aquisição de um automóvel. Imóveis em áreas centrais às vezes nem incluem vaga de garagem por serem bem servidas por linhas de metrô ou ônibus.
Diante disso, por incrível que pareça, nossa “indústria automobilística” (na verdade, todas elas multinacionais estrangeiras) ainda vive no passado. Embora nosso mercado, mesmo abatido pela crise, ainda figure como um dos maiores do mundo em volume, as montadoras relatam prejuízos seguidos.
Curiosamente, as duas marcas americanas que hoje têm os dois modelos mais vendidos do país, foram manchetes na imprensa por conta de sua situação. A General Motors, cuja Chevrolet lidera há bons anos o mercado e possui o carro mais vendido do país (Onix), deixou vazar que tem registrado prejuízos há três anos e ameaçou tomar medidas duras caso a situação não seja revertida, entre elas fechar fábricas e cortar empregos.
Esse tipo de ameaça já surtiu efeito no passado, mas hoje soa como bravata. Com a automatização das linhas de montagem empregos têm deixado de existir com o tempo e esse processo seguirá seu curso, com ou sem incentivos.
Já a Ford tomou uma atitude até certo ponto improvável, a de fechar sua fábrica no ABC Paulista, onde produz caminhões e um único automóvel, o Fiesta, que sofre com baixas vendas desde que o novo Ka (feito em sua fábrica baiana, bem mais produtiva) chegou às lojas.
Ambas, no entanto, vez ou outra lamentam sofrer com as dificuldades do país, que vive instável impedindo investimentos de longo prazo.
Na outra ponta do mercado, a situação é oposta, mas igualmente surreal. O grupo PSA, que reúne Peugeot, Citroën e, desde o ano passado, a Opel, relatou ter prejuízo na América do Sul em seu último relatório de resultados, mas após três anos de lucro.
Nada estranho não fosse fato que a empresa vende muito pouco na região. Seu maior mercado, a Argentina, em volume é bem inferior ao Brasil. Mesmo assim, a PSA insiste em produzir vários veículos nos dois países, mesmo com vendas modestas. Estão na lista carros como os médios 308, 408 e C4 Lounge, os compactos 208, C3, Aircross e 2008 e os utilitários Jumpy e Expert.
No Brasil, o modelo mais emplacado em 2018 foi o SUV 2008, com quase 10 mil unidades. Parece um volume respeitável, mas não é. A Kia, mesmo ainda sofrendo com os efeitos do dólar alto e de uma rede encolhida após a vigência do Inovar Auto, vendeu quase 5,7 mil Sportage, um utilitário esportivo bem mais caro que o Peugeot. E detalhe: importado da Coreia e pagando altos impostos.
Ainda assim, a Peugeot vai vender no Brasil no ano que vem a nova geração do 208, hatch compacto de vendas irrisórias, como comentamos na semana passada.
Dúvida existencial
Mas, afinal, se a Chevrolet, tendo o líder do mercado em seu portfólio emplacado mais de 210 mil carros em 2018, reclama de prejuízos, por que a Peugeot, com seus 7 mil 208 vendidos no ano passado, não tem dúvida de que ainda vale oferecê-lo no Brasil?
Sim, há algo de muito errado com a indústria automobilística brasileira. As montadoras literalmente contrariam os princípios do capitalismo ao ter prejuízos com carros de volume e manterem modelos de baixa demanda em produção.
Parte disso, é claro, tem uma explicação. Os carros vendidos no país são muito caros e quanto mais caros mais margem de lucro trazem. É como se o índice de impulsividade do consumidor crescesse à medida que os preços sobem. Basta notar que alguns SUVs (eles por si próprios compras emotivas) têm em suas versões mais caras a maior parte das vendas.
Ou seja, já que vender muito no Brasil dá trabalho e baixa margem de lucro, a saída tem sido olhar para cima. Nesse caso trata-se de um mercado bem menor, mas disposto a gastar mais do que precisa para ter um produto que parece (mas nem sempre é) superior.
É uma pena. Como os sucessivos governos pouco se importam em promover um uso consciente do automóvel e incentivar produtos mais sustentáveis e econômicos, viramos reféns de uma ilusão de que o automóvel é um bem de consumo imprescindível. Quanto mais demorarmos para acordar desse sonho, mais difícil será encarar a nova realidade.
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